segunda-feira, 21 de novembro de 2011

[Artigos] As ILuminuras e a Representação Religiosa no Apocalipse de Lorvão

Projeto de Monografia apresentado ao Profº Drº Sinval Carlos Gonçalves.
Universidade Federal do Amazonas - UFAM, Julho de 2009.
Samuel Ambrósio Cavalcante 

As Iluminuras e a Representação Religiosa no Apocalipse do Lorvão (c.1189)




1. Tema

As Iluminuras e a Representação Religiosa no Apocalipse de Lorvão (c.1189).


2. Objetivo

O Objetivo deste trabalho é examinar as iluminuras do Apocalipse de Lorvão através da relação entre imagem-texto.


3. Justificativa

O Apocalipse é o último dos livros do Novo Testamento. Segundo a tradição cristã foi o apóstolo João quem o escreveu durante seu exílio na ilha de Patmos, na Ásia Menor. O texto foi incluído no cânon do Novo Testamento depois de muita controvérsia. Entrementes, já era largamente aceito pelo corpo maior dos cristãos. A Igreja ocidental o aceitou desde o século III enquanto a Igreja Oriental só o incluiu no Cânon no século XV. Os escritos apocalípticos exerceram e exercem no Cristianismo grande fascinação. Um fim determinado, o futuro humano, o poder sobre a morte e a esperança de um mundo futuro são mensagens e doutrinas fundamentais do cristianismo. Não admira que a grande partes dos movimentos cristãos separatistas apresentem uma forte tendência escatológica milenarista.
O Apocalipse está fundamentado no maior dogma do Cristianismo: a encarnação de Jesus Cristo. O Cristianismo pensa o tempo, da mesma forma que o Judaísmo, linear e finito[1]. Teve um começo e terá um fim. Para os cristãos dos séculos I ao V era imprescindível saber os sinais que indicariam o final dos tempos. Cristo ressurreto voltaria a terra para julgar o homem de acordo com os seus atos e instauraria uma nova ordem mundial. Jesus endossou estes sinais:

E, certamente ouvireis falar de guerras e rumores de guerras; vede, não vos assusteis, porque é necessário assim acontecer, mas ainda não é o fim. Porquanto se levantará nação contra nação, reino contra reino, e haverá fomes e terremotos em vários lugares; porém tudo isto é o princípio das dores. Então, sereis atribulados, e vos matarão. Sereis odiados de todas as nações, por causa do meu nome. Nesse tempo, muitos há de se escandalizar, trair e odiar uns aos outros; levantar-se-ão muitos falsos profetas e enganarão a muitos.[2] (...) Aprendei, pois, a parábola da figueira: quando já os seus ramos se renovam e as folhas brotam, sabeis que está próximo o verão.[3]

Para os cristãos medievais, principalmente dos povos ibéricos, a vinda de Cristo apontava para um Novo Mundo, longe das dores, guerra, pecado, fome e doenças. O Cristianismo e o Judaísmo, diferente de outras religiões, não apontam um recomeço e nem uma volta a um passado de ouro[4]. Ao contrário. Anuncia um novo mundo totalmente reconstruído e transformado[5]. No contexto português, o Apocalipse de Lorvão perde-se em um emaranhado de mentalidades políticas, religiosas e sociais. É a época da reconquista, formação do estado português, guerras e sucessões dinásticas, cisma católico-ortodoxo, guerras mouro-cristãs. O Apocalipse de Lorvão português assimila muito destes tempos e momentos em suas iluminuras e, no momento do auge reformista cisterciense, critica as artes, cultura, religiosidade e organização cluniacence.
O Apocalipse de Lorvão, assim chamado por ter sido iluminado no mosteiro de Lorvão[6], foi iluminado por Egeas, ou Egas durantes os anos de 1183-1184. É um trabalho baseado no Comentário ao Apocalipse, de autoria de um monge asturiano chamado Beato de Liébana. Este monge teceu um comentário ao apocalipse no século VIII, período turbulento do desestruturado império romano do ocidente. O Apocalipse de Lorvão faz parte de uma coleção de códices iluminados chamados Beatos, baseados no Beato de Liébana[7].
Compreender a formação deste texto e inseri-lo dentro de uma temporalidade cultural, social e religiosa são primordiais na compreensão do mundo medieval e cristão português. Vários trabalhos portugueses e internacionais sobre o Apocalipse do Beato de Liébana já foram publicados. O viés geralmente segue o documental. Quando se volta para o estético há um exagero depreciativo. Muitos historiadores da arte acentuam um caráter pobre das cores utilizadas sem, no entanto, atentarem para as funções sociais e culturais em que as miniaturas se inserem. As cores predominantes dele são vermelho, laranja, negro e amarelo, ao passo que de outras obras portuguesas iluminadas deste período esbanjam nas cores. Segundo Maria Adelaide Miranda, a utilização de tais cores foi proposital:

ao preto, cor aplicada em circunstâncias específicas, acentuando a carga simbólica de uma determinada cena. (...) O amarelo, o laranja e o vermelho serão utilizados para delimitar cenas, para individualizar acontecimentos numa mesma cena, funcionando mesmo como elemento de interligação entre registros diferentes (...) destacando o desenho, essência da mensagem veiculada[8].

Entretanto, algumas obras já trabalhadas abordam o valor estético, o enfoque cultural e social, dentro das mais recentes teorias da arte ou históricas. Os historiadores cada vez mais estão se voltando para o estudo das fontes iconográficas e imagéticas. As iluminuras dizem o modo de pensar de uma época e, no caso de produção textual cristã, estão intrinsecamente ligadas à escrita. Segundo Schmitt, as imagens têm uma função específica para a sociedade para qual foi produzida[9].
Seguindo este raciocínio, o Apocalipse de Lorvão, é mais do que um livro iluminado; ele tem sua função social própria dentro de um quadro histórico maior. Em nossa análise propomos que a utilização das cores e os formatos dos traços estão em direta concomitância com a austeridade e moral beneditina, valores estes assimilados pela leitura e visualização das miniaturas[10]. Ora, sendo o Apocalipse um livro rico em simbolismos, as miniaturas chamam a atenção para estes mesmo simbolismos imediatos da mensagem apocalíptica.
Segundo Schmitt, as figuras medievais parecem surgir para fora dos manuscritos, convidando o espectador a entrar no mundo invisível, na epifania que elas parecem sugerir[11]. Esta epifania não está apenas ilustrando passagens do Apocalipse, mas está convidando o leitor a entrar neste mundo vindouro, do qual ele acredita e vê na representação das imagens como uma sombra das coisas celestiais. Talvez este pensamento estivesse muito forte entre os cristãos medievais. Segundo Schmitt, o ocidente medieval pensa o mundo como uma imagem deturpada da Criação[12]. O Novo Testamento dá bases para este pensamento no livro de Hebreus. Neste livro o autor aponta todos os sacrifícios do antigo judaísmo como sombras do verdadeiro, do real[13]. Este jogo de linguagem está bem presente no Apocalipse. Quando anjo que acompanha João mostra algum acontecimento, pessoa ou lugar, ele ou o próprio autor declara como sendo semelhante, algo próximo de um real impossível de ser copiado.
Entretanto, o homem medieval acreditava na existência de seres fantásticos e a leitura de qualquer texto iluminado o confrontava com a existência real deste mundo. Neste ponto, o Apocalipse de Lorvão talvez esteja em um ambiente híbrido. Presumimos que os monges pelo próprio acreditavam nestes seres e fenômenos, mas de forma diferente. Quase como uma hermenêutica de separação entre o que era real e imaginário para eles. Mas são questões maiores que este trabalho não se propõe.


4. Metodologia

Os métodos aplicados consistiram de leitura paleográfica dos textos referentes às iluminuras; observação do tipo de escrita; descrição de paletas de cores, levantamento de trabalhos anteriores e descrição pré-iconográfica das miniaturas. A fonte estudada foi disponibilizada no portal da Torre do Tombo. Para o uso de referências bíblicas utilizamos a notação protestante brasileira. Os livros, capítulos e versículos nesta notação encontram-se sob a fórmula: Lv C.v (Livro, capítulo, versículo), e.g., Ap 4.12.
Decidimos utilizar a tradução bíblica brasileira (Revista e Corrigida – RC) por estar baseada no Textus Receptus, texto grego mais antigo e utilizado pela Vulgata e pelo motivo da versão latina portuguesa estar bem próxima do Textus Receptus. Fizemos a omissão de traduções já consagradas (a exemplo da Bíblia de Jerusalém) pelo motivo de muitas delas, sejam católicas, ortodoxas ou protestantes, acrescentarem, omitirem ou discordarem de algumas passagens do livro do Apocalipse. Ademais, as traduções de Almeida têm grande aceitação por parte do público geral de fala portuguesa e de grande parte do segmento especializado. Quanto à leitura do texto latino português, já que o texto de Lorvão mistura o texto bíblico e o comentário, fez-se necessário o uso de outra fonte latina para localizar os devidos textos.


4. Fontes

4.1. Arquivo Nacional da Torre do Tombo:
4.1. Mosteiro de Lorvão. Livraria do Mosteiro. Ordem de Cister, Mosteiro de Lorvão, liv. 44, Casa Forte, 160. Ano de 1189. Código de refêrencia: PT-TT-MSML/B/44. Disponível em: <HTTP://www.ttonline.dgarq.org.pt>. Acessado em 25/01/2009.

Fólios: 12v, 14v, 17, 33a, 43, 49, 54, 59, 64, 68v, 73, 80, 86, 90, 108v, 112, 115, 118, 119v, 120, 134, 135, 136-139, 140v, 142, 143, 144, 146, 148, 149, 150v, 152, 153v, 158, 161, 167, 167v, 169, 171, 172v, 175, 176, 177, 181v, 182, 184v, 185v, 186v, 191, 193, 195v, 196v, 198, 199, 200, 201, 202v, 203v, 206, 207, 209v, 210, 217, 217v.


4.2. Bíblias

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. 2 ed. Tradução de João Ferreira de Almeida. Revista e Corrigida no Brasil. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Revista, Corrigida e Anotada. Barueri: SBB, 2000.

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Nova Tradução na Linguagem de Hoje. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2000.

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Vulgata de Clementino. Nova edição revisada. Vaticano, 2004. Disponível em: . Acessado em: 12/02/09.


4.3. Sites



5. Bibliografia de apoio

5.1. Artigos

BASCHET, Jérôme. Inventivité et sérialité des images médiévales. Pour une approche iconographique élargie. Annales. Histoire, Sciences Sociales. 1996, Volume 51, Numéro 1, p. 93 – 133.

BASCHET, Jérôme. Introdução: a imagem-objeto. In: SCHMITT, Jean-Claude; BASCHET, Jérôme. L'image. Fonctions et usages des images dans l'Occident médiéval. Paris: Le Léopard d'Or, 1996. p. 7-26 (tradução: Maria Cristina C. L. Pereira).

BARBU, Daniel. L'image byzantine: production et usages. Annales. Histoire, Sciences Sociales, Année 1996, Volume 51, Numéro 1,. p. 71 – 92

MIRANDA, Maria Adelaide Miranda et alli. À descoberta da cor iluminura medieval. IN:Adelaide Miranda e MELO, Maria João. Fundação para a Ciência e Tecnologia

SCHMITT, Jean-Claude. La culture de l'imago. Annales. Histoire, Sciences Sociales, Année 1996, Volume 51, Numéro 1, p. 3 -36.


5.2. Livros

FRANCO JR., Hilário. As Utopias medievais. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992.

FRANCO JR., Hilário. A Eva Barbada — Ensaios de Mitologia Medieval. São Paulo: Edusp,

LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989.

LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2006.

PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991.

RUCQUOI, Adeline. História Medieval da Península Ibérica. Lisboa: Editorial Estampa, 1995.

SARAIVA, António José. A cultura em Portugal. Teoria e História. Livro II. Primeira época: a formação. Lisboa: Edições Gradiva, 1991.

SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: Ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru: EDUSC, 2007.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz — a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.


6. Bibliografia

BASCHET, Jérôme. A civilização do ocidente medieval: do ano mil a colonização da América. São Paulo: Globo, 2006.

BORGES, Nelson Correia. Arte monástica em Lorvão – Sombras e realidades. Das origens a 1737. Vol 1. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.

BURKE, Peter. (Org). A escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992.

CAIRNS, E. Earle. O cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. Israel Belo de Azevedo (Trad.). 2 ed. São Paulo: Vida Nova, 1995.

CHARTIER, Roger. A História CulturalEntre Práticas e Representações. Lisboa: Difel/Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

COELHO, Maria Helena da Cruz. Análise diplomática da produção documental do scriptorium de Lorvão: séculos X-XII. Universidade de Coimbra: Faculdade de Letras.

DARTON, Robert. O grande massacre de gatos.

DELUMEAU, Jean. O que sobrou do Paraíso?

DUBY, Georges; LACLOTTE, Michel. História artística da Europa. Tomo I. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

ENOUT, Dom João Evangelista (Trad.). Regra de São Bento de Núrsia (480-547). Disponível em: <http://www.ricardocosta.com/pub/liebana.htm>. Acessado em 04/04/2009.

GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais — Morfologia e História. São Paulo: Companhia da Letras, 1989.

MARQUES, José. Práticas paleográficas em Portugal no século XV. Revista da Faculdade de Letras: Ciências e técnicas do patrimônio. Porto, 2002. 1 Série, vol.1, pp. 73-96.

MATTOSO, José (Cord.). A Monarquia Feudal (1096-1480). Vol. 2. História de Portugal. José Mattoso (Dir.). Lisboa: Estampa, 1997.


[1] LE GOFF, Jacques. Idades Míticas. IN: Historia e Memória. Campinas: UNICAMP, 1996, pp. 283-320.
[2] BÍBLIA, Mateus, O princípio das dores, 24.6-11. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Revista e Corrigida no Brasil. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. Salvo exceção, todas as referências aqui utilizadas são da Revista e Atualizada.
[3] BÍBLIA, Mateus, O princípio das dores, 24.32. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Revista e Corrigida no Brasil. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
[4] LE GOFF, Jacques. LE GOFF, Jacques. Idades Míticas; Escatologia. IN: Historia e Memória. Campinas: UNICAMP, 1996, pp. 283-320; pp. 325-367.
[5] LE GOFF, Jacques. Além. Tradução de José Carlos Estevão. In: Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Vol.1. Bauru: ESDUSC, 2006. pp.21-34
[6] O mosteiro era um reduto beneditino que aderiu ao movimento cistercience no século XII. Nelson Correia Borges trabalha a história e arte no mosteiro em Arte monástica em Lorvão – Sombras e realidades. Das origens a 1737. Vol 1. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
[7] São exemplos o Beato de Girona, Beato de San Millan de La Cogolla, Beato do Burgo de Osma, Beato de Saint Server, Beato de Turim e Beato de Valcado.
[8] MIRANDA, Maria Adelaide (dir.). A Iluminura em Portugal. Identidade e Influências. Lisboa: Ministério da Cultura / Biblioteca Nacional, 1999.
[9] SCHMITT, Jean-Claude. O Corpo das Imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru: EDUSC, 2007. pp.11-22
[10] Regra de São Bento de Núrsia (480-547), capítulo 57. Tradução de Dom João Evangelista Enout. Disponível em: <http://www.ricardocosta.com/pub/liebana.htm>. Acessado em 04/04/2009.
[11] SCHMITT, Jean-Claude. O Corpo das Imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru: EDUSC, 2007. pp.11-22
[12] Op.citatum.
[13] Para esta idéia usamos o texto de Hebreus, capítulos 8-10. Entretanto, não é um texto ou idéia isolada. Todo o Novo Testamento afirma ser uma continuidade da chamada Antiga Aliança e aponta para a revelação do verdadeiro mundo, incorruptível.

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